Cinzento


            Eram nove da manhã quando cheguei à esquadra. Dormira mal e, talvez por isso, a cabeça pesava-me e o local parecia-me anormalmente cinzento e sem gosto; apesar de ser um dia bem quente e amarelo. No entanto, o ruído e o cheiro a café eram omnipresentes como de costume. Ao fechar a porta , que, aliás, ainda tinha o nome agente que o ocupara anteriormente, o ruído tornou-se mais baço, como seu tivesse mergulhado e ouvisse o som abafado a chicotear lá fora. A bebida quente queimou-me os lábios, o que me fez saltar, encolhendo os ombros e afastando a caneca da boca. Olhei para a secretária, vi uma pequena folha enrugada e esborratada. Espicacei a cabeça e pareceu-me ler, numa caligrafia desajeitada, “Temos uma caso novo. Liga-me assim que puderes. J." Foi o que fiz.
            Já a caminho do meu parceiro, reparei que não trazia a minha arma comigo. Na altura, não me preocupei com o assunto.
            Quando cheguei, o casarão, maior do que eu imaginara, jazia centrado num terreno ainda maior, com jardins a toda a volta. Uma propriedade daquele tamanho necessitaria, ao certo, de muito trabalho. Pensei que a quantidade de jardineiros que via e os dois criados que me levaram do portão à porta não seriam gente a mais; pensei se não seria aquela casa impessoal. Contrastemente, a dona de casa, Mrs. Judson apareceu para me cumprimentar, com toda aquela alegria que lhe dava poder ser inútil, trazendo refrescos, bem, um criado trazia-os. Cá fora, o alvoroço dos corta-relvas e o som de crianças a chapinhar numa piscina ao longe penetrava-me na cabeça. Quando a grande porta de madeira se fechou atrás de mim, de novo, foi como se tivesse mergulhado. Lá dentro, o chão de mármore branco, que subia até ao teto alto, era enfeitado por tapetes, antiguidades que faziam de biblots, até um Steinway & Sons branco, raro, se alongava delgadamente pela vidraça que mostrava dois rapazes, quer dizer, miúdos, a fazer "bombas", salpicando um jardineiro que aparava uma magnólia negra. No sofá creme, onde tomavam café, estava Jeremy, falando num tom alegre o meu parceiro, e um homem com, no mínimo, cinquenta anos. Mrs. Judson tratou das apresentações, penso que  se sentia como se ela própria fosse uma empregada da família. O homem era Mr. Dexter Judson, o pai de família. As primeiras impressões que tivera ao falar com o homem foram de que aquela era uma família paradigmaticamente americana: pai trabalhor rico(corretor da bolsa), mãe dona de casa e três filhos. Olhei de novo para piscina e agora, via já outra cena. Os dois miúdos já tinham saído, e agora estava uma rapariga adolescente a bronzear-se. Confesso que o seu corpo deleitoso, curvo, com pele branca e cabelo loiro comprido me chamou toda a atenção de forma, até, erótica. Bem, não era tempo para isso. Ao ver a expressão carregada do pai enquanto falava da sua família, indaguei-me se seria por estar apenas cansado, ou se haveria uma verdade insólita mais negra acerca desta família, que cada vez mais me parecia apenas um grupo de parentes. Pelos vistos, o meu colega também o pressentira, pelo que perguntou:
            - Há algo que me queira contar que seja fora do normal? Algo que possa estar relacionado com o desaparecimento do rapaz?
            - Bem... Há algo, porém... O George era… - aclarou a garganta, provavelmente apenas para se preparar psicologicamente - ... era viciado, toxicodependente, percebe? - especou durante uns segundos, depois disse de forma autoritária - Preciso de sair, mas avisei todo o pessoal e pode indagar à vontade.
            Finalmente pude privar com Jeremy. Disse-lhe que me parecia que as pessoas daquela família não se amavam. Concordou. Acrescentou que só podia ser esse o caso, pois até o irmão; um dos miúdos na piscina anteriormente, disse-me; e a irmã; a tal rapariga que se bronzeava; pareciam não estar minimamente preocupados com o irmão desaparecido. Para além disso, Mr. Judson falara do filho, referindo-o sempre pelo nome, nunca por "o meu filho". Jeremy já não parecia tão alegre.
            Apesar da minha má-disposição geral, era fascinante para um novato como eu observar uma lenda da L.A.P.D. a trabalhar de modo tão próximo. Lembrei-me do meu primeiro dia como estagiário. Tinha acabado de sair da academia, não sabia nada de nada, mas estava cheio de mim próprio. Claro que J. se apercebeu logo (não é por acaso que é o detetive mais eficiente que alguma vez conheci).
            O som dos corta-relvas era cada vez mais incómodo. A minha cabeça palpitava. As minhas têmporas estavam a ferver. Estava completamente atordoado e a o meu campo de visão era cada vez mais reduzido. Como se duas nuvens negras se aproximassem do meu nariz, lentamente, e não havia nada que eu pudesse fazer para as conter. Na minha cabeça, cambaleava devido ao esforço físico que fazia para não cair. Na realidade, o episódio deve ter durado apenas uns segundos. Estava negro. Desmaiei.

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